Continuando nossa série de artigos sobre alcoolismo, abordaremos agora uma série de fatores relacionados ao consumo de álcool no Brasil. Lembraremos e reforçaremos alguns pontos já citados nos artigos anteriores.
Dados epidemiológicos relacionados ao uso do álcool
O álcool é a droga lícita mais consumida no País, provocando danos sociais e à saúde. Estudos nacionais e internacionais têm demonstrado a ocorrência significativa de mortes e doenças associadas ao uso de álcool, sendo o seu consumo abusivo a terceira causa de mortalidade e morbidade no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
De acordo com o órgão, a cada ano, cerca de dois milhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas, o que corresponde a 40% da população mundial acima de 15 anos de idade, e cerca de dois milhões de pessoas morrem em decorrência das consequências negativas desse consumo (por exemplo, intoxicações agudas, cirrose hepática, violência e acidentes de trânsito). Somente na América Latina e região do Caribe, estima-se que 10% das mortes e incapacitações estejam relacionadas ao consumo de bebidas alcoólicas.
Nota: Importa registrar que é (…) “considerada bebida alcoólica aquela que contiver 0,5 grau Gay-Lussac (oGL=%V), que é a quantidade em mililitros de álcool absoluto contida em 100 mililitros de mistura hidro-alcoólica ou mais de concentração, incluindo-se aí bebidas destiladas, fermentadas e outras preparações, como a mistura de refrigerantes e destilados, além de preparações farmacêuticas que contenham teor alcoólico igual ou acima de 0,5 grau Gay-Lussac”.
Estudo realizado em 2006 pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em parceria com a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) da Universidade Federal de São Paulo, verificou, em uma amostra de 1.152 adultos brasileiros consumidores de bebidas alcoólicas, que 45% apresentavam problemas decorrentes do beber no momento da pesquisa ou os tiveram no passado, sendo 58% homens e 26% mulheres.
Esses problemas relacionados ao uso do álcool são prioritários em termos de saúde pública, tornando necessária a elaboração de estudos sobre o tema, associados a campanhas preventivas e à continuidade na implementação de políticas públicas de saúde efetivas.
Definições sobre padrões de consumo de álcool
A grande maioria das pessoas que bebe o faz de forma moderada. Há, contudo, evidências de que o “beber pesado” tem se tornado cada vez mais frequente tanto em homens como em mulheres. Dessa forma, o aparecimento de problemas decorrentes desse padrão de beber é cada vez mais comum, mesmo em indivíduos que não apresentam o diagnóstico de dependência alcoólica. Quando os problemas provenientes do uso abusivo do álcool se tornam frequentes em diversas áreas de atuação do indivíduo (família, trabalho, saúde física etc.), então devemos investigar critérios para abuso e dependência do álcool.
Os principais padrões de consumo de álcool mencionados na literatura científica são o uso moderado de álcool e abuso de dependência de álcool, detalhados a seguir.
Uso moderado de álcool
O uso moderado de bebidas alcoólicas é um conceito difícil de definir, na medida em que é interpretado de maneira diferente de acordo com a percepção de cada indivíduo.
Comumente essa definição acaba sendo confundida com o beber socialmente, que significa o uso de álcool dentro de padrões aceitos pela sociedade. Ademais, com frequência, a moderação é vista de maneira errônea como uma forma de uso de álcool que não traz consequências adversas ao consumidor.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que, para se evitarem problemas de álcool, o consumo aceitável é de até 15 doses/semana para os homens e 10 doses/semana para as mulheres, sendo que uma dose equivale, aproximadamente, a 350 ml de cerveja, 150 ml de vinho ou 40 ml de uma bebida destilada, e cada uma dessas contém 10 a 15 g de etanol. O National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) utiliza o termo “beber moderado” para se referir ao consumo com limites em que prejuízos não são esperados tanto para o indivíduo quanto para a sociedade; os homens não devem ultrapassar o consumo de duas doses diárias de álcool; e as mulheres, de uma dose diária. Tanto homens quanto mulheres não devem beber mais de duas vezes na semana.
Nota: Importa destacar que Beber Pesado Episódico (BPE) – também considerado “binge drinking” por muitos autores – é definido como o consumo de cinco ou mais doses de bebidas alcoólicas, em uma única ocasião, por homens, ou quatro ou mais doses de bebidas alcoólicas consumidas, em uma única ocasião, por mulheres, pelo menos uma vez nas últimas duas semanas.
O critério de BPE do NIAAA é semelhante e definido como o consumo de cinco ou mais doses de bebidas alcoólicas em uma única ocasião por homens ou quatro ou mais doses de bebidas alcoólicas consumidas em uma única ocasião por mulheres, sem levar em conta a frequência desse padrão de consumo. A definição de BPE foi criada a partir de evidências científicas crescentes de que essas quantidades (5+/4+) aumentam o risco de o indivíduo apresentar problemas relacionados ao uso de álcool.
Um corpo crescente de evidências epidemiológicas tem demonstrado, de modo consistente, que o “beber pesado” está associado a uma gama significativa de situações adversas à saúde e à sociedade, tais como: danos à saúde física, comportamento sexual de risco, gravidez indesejada, infarto agudo do miocárdio, intoxicação alcoólica, quedas e fraturas, violência (incluindo brigas, violência doméstica e homicídios), acidentes de trânsito, problemas psicossociais (por exemplo, família e trabalho), comportamento antissocial, além de dificuldades escolares, tanto em jovens como na população em geral. Além disso, o “beber pesado” está associado a um aumento da mortalidade por todas as causas de doenças cardíacas e está relacionado a um risco maior para transtornos psiquiátricos, câncer e doenças gastrointestinais.
Abuso ou dependência do álcool
A definição de Alcoolismo nem sempre acompanhou os critérios diagnósticos formais para as síndromes. Esses critérios foram elaborados, ao longo dos anos, pela Classificação Internacional de Doenças (CID) e pelo Manual Diagnóstico Estatístico (elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria). De acordo com o National Council on Alcoholism and Drug Dependence, alcoolismo é uma doença primária, crônica, com fatores genéticos, psicossociais e ambientais que influenciam seu desenvolvimento e manifestações. A maior parte dos clínicos utilizam os critérios diagnósticos para abuso e dependência do álcool a fim de tornar diagnóstico mais objetivo e estruturado, e facilitar o direcionamento do tratamento. A dependência do álcool é definida, no IV Manual Diagnóstico Estatístico (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria, como a repetição de problemas decorrentes do uso do álcool em, pelo menos, três das sete áreas de funcionamento, ocorrendo conjuntamente em um período mínimo de 12 meses.
Uma ênfase é atribuída à tolerância e/ou aos sintomas de abstinência, condições associadas a um curso clínico de maior gravidade. A dependência ocorre em homens e mulheres de todas as etnias e classes socioeconômicas. O diagnóstico prediz um curso de problemas recorrentes devido ao uso do álcool e um consequente encurtamento da vida por uma década ou mais. Na ausência de dependência ao álcool, o indivíduo pode receber o diagnóstico de abuso de álcool se ele apresentar problemas repetidos decorrentes deste uso em, pelo menos, uma das quatro áreas relacionadas ao viver: esfera social, interpessoal, legal e problemas ocupacionais ou persistência do uso em situações perigosas (por exemplo: beber e dirigir).
Nota: A OMS ainda esclarece que, em algumas situações, o uso do álcool não é recomendado nem em pequenas quantidades. Dentre elas se encontram:
- Mulheres grávidas ou tentando engravidar;
- Pessoas que planejam dirigir ou que estão realizando tarefas que exijam alerta e atenção, como a operação de uma máquina;
- Pessoas com condições clínicas que podem piorar com o uso de álcool, como a hipertensão e o diabetes;
- Alcoolistas em recuperação;
- Menores de 18 anos.
Diferenças entre termos alcoólatra e alcoolista
Os termos alcoólatra e alcoolista são usados quase que indistintamente pela comunidade científica e o público leigo para definir a “dependência de álcool”.
O termo alcoólatra foi utilizado, por muitos anos, para designar aqueles indivíduos que bebiam abusivamente e que, por conta disso, (1) tinham uma série de problemas decorrentes do uso do álcool e (2) escolhiam ou continuavam fazendo uso da substância a despeito dos problemas que ela gera para o bebedor e para seus familiares.
O termo alcoólatra, portanto, mostra que o indivíduo é alguém que está fadado a uma condição de depreciação, fraqueza e falta de escolhas, pois privilegia o álcool acima de todas as coisas. Essa condição não é verdadeira, visto que, quando a dependência está instalada, em muitas ocasiões, o indivíduo bebe para minimizar os efeitos da abstinência, e não para ter prazer.
O termo alcoolista, por sua vez, é proposto por alguns pesquisadores como uma alternativa menos estigmatizante, visto que o termo coloca o indivíduo como alguém que tem afinidade pelo álcool e não é seduzido por ele. O termo alcoolista foi utilizado em substituição ao alcoólatra a fim de não responsabilizar unicamente o bebedor pelos problemas decorrentes ao uso do álcool, mas sim reconhecer que o álcool é uma substância lícita, socialmente aceita e disponível; todavia, quando utilizada em grandes quantidades e frequências, expõe o bebedor a muitos riscos.
Nota: A expressão mais adequada para designar o indivíduo que tem sintomas físicos desencadeados pela falta de álcool, assim como outros problemas decorrentes do uso dessa substância, é dependente do álcool. A dependência do álcool é uma condição clínica. Quando se identifica tal dependência, são conferidos um diagnóstico e um tratamento para o indivíduo a fim de que ele possa se recuperar e voltar a ter uma vida dentro de um contexto social considerado normal.
Farmacologia do etanol
A farmacologia do álcool é um tema particularmente importante para ser abordado neste capítulo, uma vez que facilita o entendimento dos problemas decorrentes do uso dessa substância em muitos indivíduos que a consomem.
O álcool é o etanol (álcool etílico). O nível do álcool no sangue, que denominamos de alcoolemia, é expresso como gramas de etanol por litro (por exemplo: 0,2 g/L); o consumo de uma dose de bebida alcoólica – que equivale a uma lata de cerveja, uma taça de vinho de 140 ml ou uma dose de bebida destilada de 35 ml, conforme dito acima -, por um homem de 70 kg, resulta em uma alcoolemia de 0,2g/L. Já uma mulher de 60 kg terá a alcoolemia de 0,3 g/l.
Os níveis máximos de concentração de álcool no sangue geralmente ocorrem após meia hora do consumo, mas podem variar na população. O organismo subsequentemente metaboliza e excreta, aproximadamente, uma dose por hora; ou seja, se o indivíduo beber quatro doses de bebidas alcoólicas em uma festa terá de esperar quatro horas, antes de dirigir, para que todo o álcool saia do organismo. Vale lembrar que café preto, refrigerante ou banho gelado não são medidas que resolvem esse tipo de situação, nem são capazes de acelerar a metabolização do álcool e, consequentemente, diminuir a embriaguez.
Como consequência de sua alta solubilidade em água, o etanol cai rapidamente na corrente sanguínea, de onde é distribuído para a maioria dos órgãos e sistemas. O etanol é absorvido pela boca, esôfago (em pequenas quantidades), estômago, intestino grosso (em quantidades moderadas) e intestino delgado, local principal de sua absorção e também onde as vitaminas do complexo B são totalmente absorvidas. A taxa de absorção é aumentada quando o estômago está vazio; ou seja, beber com o estômago vazio aumenta muito a absorção do álcool, fazendo com que o indivíduo fique embriagado mais rapidamente. Somente 10% do etanol são excretados diretamente pelos pulmões, urina ou suor, e a maior parte é metabolizada no fígado.
Apesar de o álcool fornecer calorias (uma dose de bebida alcoólica contém aproximadamente 70 a 100 kcal), estas são desprovidas de nutrientes, tais como minerais proteínas e vitaminas.
Nota: Indivíduos que fazem uso crônico de grandes quantidades de álcool podem, com o passar do tempo, desenvolver complicações em diversos órgãos, tais como: inflamações no esôfago, no estômago, fígado, gorduroso, hepatite e cirrose hepática, pancreatite, deficiências vitamínicas, demência e câncer.
Consequências negativas relacionadas ao abuso do álcool
Apresentam-se, a seguir, as consequências negativas relacionadas ao abuso do álcool tanto à saúde quanto à sociedade.
Álcool e gravidez
O consumo excessivo de álcool entre as gestantes constitui um problema relevante de saúde pública, pois pode levar à Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), expressão de maior comprometimento comportamental e neurológico em filhos de mulheres que beberam em excesso na gestação. O consumo abusivo e/ou a dependência de álcool traz, reconhecidamente, inúmeras repercussões negativas sobre a saúde física, psíquica e a vida social da mulher. As mulheres com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas apresentam características e necessidades de tratamentos diferentes das dos homens. Os estudiosos propõem, por isso, o desenvolvimento de programas específicos para mulheres, e o princípio fundamental para desenvolver e implantar esses programas é utilizar estratégias particularmente responsivas às necessidades das mulheres.
Nota: Você sabia que a gestante que abusa do álcool durante a gestação faz do feto um co-consumidor de álcool, uma vez que placenta não filtra o álcool do sistema circulatório da mãe para o feto? O resultado pode ser uma Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), com lesões possíveis, como deficiência de crescimento intrauterino e pós-natal, microcefalia, entre outros. Também são frequentes deformações físicas, principalmente nas extremidades, na cabeça, no coração e nos órgãos genitais. Outro sintoma frequente é a síndrome de abstinência, que se instala no recém-nascido logo após o parto, podendo levar a uma morte repentina após horas de vida, e que nem sempre é devidamente diagnosticada. Após 40-60 minutos de ingestão de álcool por uma gestante, a concentração de álcool no sangue fetal fica equivalente à concentração de álcool no sangue da mãe.
As mulheres que fazem uso de álcool durante e após a gestação estão expondo seus filhos a riscos já identificados em vários estudos clínicos e experimentais, inclusive evidências recentes sugerem que mesmo uma dose de álcool por semana está associada com possibilidade de dificuldades mentais. O recém-nascido de uma alcoolista pesada mama pouco, é irritável, hiperexcitado e hipersensível, tem tremores e fraqueza muscular, tem alteração do padrão do sono, transpira muito e pode ter apneia (não consegue respirar).
Nota: E o que faz o etanol no organismo que está em crescimento dentro do útero?
Os danos pré-natais na época da concepção e primeiras semanas podem ser de natureza mutagênica, levando a aberrações cromossômicas graves. No 1º trimestre, há o risco de má-formação e disformismo facial (alterações na face), pois se trata de fase crítica para a formação do bebê; no 2º trimestre, há o aumento de incidência de abortos espontâneos; e no 3º trimestre, o álcool lesa outros tecidos do sistema nervoso. Além disso, vai causar retardo de crescimento intrauterino e comprometer o parto, aumentando o risco de infecções e de trabalho de parto prematuro, o que constitui forte indicação de sofrimento fetal.
As alterações físicas e mentais que ocorrem na Síndrome Alcoólica Fetal podem ser totalmente prevenidas se a gestante não consumir álcool ao longo de sua gravidez; a recomendação da Academia Americana de Pediatria e do Colégio Americano de Ginecologistas e Obstetras é, portanto, a completa abstinência de álcool, em qualquer quantidade e em qualquer fase da gravidez. Os danos que o etanol provoca em fetos de mulheres usuárias de álcool são permanentes e irreversíveis. Há, porém, meios de reduzir as consequências desse uso abusivo, por meio de ações multiprofissionais.
Álcool e violência
Estudos científicos demonstram a relação entre o uso de álcool e violência. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos, em 2001, relataram que 76% das ocorrências relacionadas à violência sexual tinham relação com o consumo de bebidas alcoólicas.
Outro estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde na Argentina, no Brasil e no México mostrou que cerca de 80% de pacientes que deram entrada em setores de emergência como vítimas de violência (intencionais ou não intencionais) eram do sexo masculino e tinham menos de 30 anos de idade. Um estudo chileno demonstrou, também, uma porcentagem elevada de pessoas com alcoolemia positiva envolvidas em casos de violência.
Nota: No Brasil, dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) apontaram que 52% dos casos de violência doméstica estavam ligados ao consumo de álcool pelo espancador.
A partir da revisão da literatura, sabe-se que o consumo abusivo de álcool é um importante facilitador de situações de violência, aumentando o risco de um indivíduo vir a cometer ou ser vítima de comportamentos violentos; o álcool não é, contudo, a causa única e direta da violência. Outros fatores devem ser considerados, como os contextos sociais e culturais de cada situação e os fatores de risco.
Nota: Como visto, outros padrões de consumo do álcool, como o “beber pesado”, antes mesmo da dependência, trazem problemas de diversas ordens, tanto para o indivíduo quanto para a família e para a sociedade em geral. Em função disso, o álcool é considerado um problema de saúde pública e requer ações de diversos níveis.
Observação: O presente artigo contém informações da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD).