A pessoa dependente em apostas pode ficar ansiosa, irritadiça ou
desatenta demais em funções que podem plena atenção,
como cuidar de portarias
Em “Vale Tudo”, novela da Globo, o porteiro Vasco (Thiago Martins) comprometerá até o dinheiro da pensão do filho com bets. Infelizmente o vício do personagem vai além da ficção, refletindo grave problema da sociedade contemporânea. A promessa de ganhos fáceis em jogos de tigrinhos e aviõezinhos, entre outros, pode trazer consequências como adoecimento mental, muitas vezes com ideação suicida, e mazelas financeiras. Vício em cassino online não é exclusividade do trabalhador de condomínio, mas categorias menos remuneradas são mais suscetíveis ao canto da sereia. Uma vez adoecido, o funcionário passa a apresentar comportamento que interfere em seu desempenho.

Novela “Vale Tudo” aborda vício em apostas por meio do porteiro Vasco (Thiago Martins)
Foto Globo/Léo Rosario
O síndico profissional Jefferson Dias teve de desligar um porteiro em edifício comercial. “Ele era prestativo e responsável, mas desde que começou com as bets, virou outra pessoa. Ficava o tempo todo com dois celulares, um para jogar, outro para acompanhar lives de jogos. Não tirava os olhos da tela para atender os visitantes, e quando ele perdia, ficava agressivo. Vivia nervoso. Conversei várias vezes com ele, mas não houve jeito. O porteiro de outro período estava indo pelo mesmo caminho, mas conseguimos que concordasse em não usar mais o celular em excesso, o que já era regra no condomínio.”
Impacto no trabalho e vida pessoal
Especializada em psicologia da comunicação, Renata Ketendjian ministra cursos para a categoria de asseio e conservação em grandes instituições do segmento. Em seu cotidiano profissional é comum escutar relatos de terceiros sobre algum tipo de dependência, mas os que envolvem apostas online, ficaram mais frequentes de um ano para cá. “Um dos casos mais tristes ouvi de um auxiliar de limpeza de condomínio, cujo colega de trabalho começou a jogar, logo aumentou o número de aplicativos e apostas e, em menos de um ano, perdeu a casa, fez dívidas com agiotas, se afastou da família e hoje mora em um abrigo municipal”, conta.
Em sala de aula, Renata também ouviu outra narrativa preocupante vinda de um gestor que trabalha com condomínios e empresas: “Ele relatou que está lidando com faltas constantes de trabalhadores logo após o recebimento do salário, pois os funcionários que são viciados entram em um looping de ganho de salário, aposta, perdas e estado depressivo, então ficam ‘sumidos’ por alguns dias. Além disso, aumentou o número de solicitações de vales, a fim de cobrirem dívidas causadas pelas apostas que não deram certo”.
Renata destaca que não se pode controlar a vida pessoal dos funcionários, isso “seria ultrapassar a linha da ética”, diz. “Porém, defendo que a informação é o melhor caminho para alertar sobre riscos. As casas de apostas vendem uma saída fácil para uma realidade de privações financeiras. Quando trazemos informação de qualidade, apontando dados, desmistificando como funcionam as casas de apostas, os algoritmos, e sobre os prejuízos financeiros e psicológicos que o indivíduo pode sofrer, damos a oportunidade de escolha consciente ao trabalhador que, por sua vez, adquire ferramentas para contrapor àquele cenário de fantasia.” Aos síndicos, ela sugere promover palestras e cursos às equipes, até sobre finanças. Em caso de dependência instalada, indica encaminhar a profissionais de saúde.
Familiares de dependentes também sofrem, como Lindeilson Alves. Zelador em um condomínio de classe média alta no Tatuapé, gestor em predinhos da Vila Ré, limpador de piscina nas horas vagas e instrutor em curso de porteiros, ele emprega todos os ganhos para abater parte da dívida contraída pela esposa no cheque especial e cartões de crédito por causa de bets. Mas as maiores dores, ele diz, são as cicatrizes emocionais da esposa. “Por causa de dívidas, ela tentou se matar, ficou internada, se recuperou fisicamente, mas vive depressiva e nossa filha está providenciando uma psicoterapia. Temos de ser pacientes, ela está doente”, diz Lindeilson.

O vício em jogos de azar, conhecido como transtorno do jogo ou ludopatia, é classificado como doença na medicina. O psicólogo clínico Edilson Braga, especialista e pesquisador do transtorno pelo Instituto de Psiquiatria da USP/Hospital das Clínicas, explica que existe similaridade entre jogo patológico e dependência de substâncias químicas. Na chamada ‘fissura’, ocorre o impulso por apostar, que compele a pessoa dependente a procurar alívio para sintomas de abstinência como sudorese, taquicardia, irritabilidade etc. E ela só sente alívio dos sintomas quando aposta, pois recebe uma descarga de dopamina. Quanto mais joga, mais dopamina o cérebro libera, instaurando-se o ciclo vicioso. A ‘emoção’ está no ato de apostar; não em ganhar ou perder. Com o advento das bets em celulares, Edilson compara: “É como ter uma boca de fumo na palma da mão”.
Nem todo mundo fica viciado em bets, mas como o risco é grande, o psicólogo adverte: “Melhor não experimentar. E é preciso ficar bem claro que não existe jogar com responsabilidade. A única forma de responsabilidade em relação ao jogo é não apostar”. Além do fácil acesso aos cassinos virtuais, fatores como genética e baixa autoestima contribuem para a dependência, bem como a maturação cerebral ainda incompleta em crianças e adolescentes. “Existe tratamento e ajuda para se livrar da dependência, mas a pessoa tem que querer; precisa reconhecer que está doente e procurar ajuda. O tratamento é realizado por psiquiatra e psicólogo em conjunto”, diz o especialista. Em São Paulo, para tratamento gratuito há o Programa Ambulatorial do Jogo (PRO-AMJO), do HC. Já no Sistema Único de Saúde (SUS) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) o adicto pode procurar pelo tratamento básico em saúde mental. Para apoio, há os Jogadores Anônimos, com reuniões online e presenciais.
A saber: https://jogadoresanonimos.com.br/




Agradecimentos aos entrevistados (na ordem da direira para esquerda):
1. Jefferson Dias, 2. Renata Ketendjian 3. Lindeilson Alves e 4. Edilson Braga
Matéria publicada na edição-311-mai/25 da Revista Direcional Condomínios
Não reproduza o conteúdo sem autorização do Grupo Direcional. Este site está protegido pela Lei de Direitos Autorais. (Lei 9610 de 19/02/1998), sua reprodução total ou parcial é proibida nos termos da Lei.
Autor
-
Jornalista apaixonada desde sempre por revistas, por gente, pelas boas histórias, e, nos últimos anos, seduzida pelo instigante universo condominial.